ISTO NÃO É UMA CHAVE?

COMO JOGAR:
Use as setas para mover.
Pressione espaço quando em cima da chave para pegá-la.
Pressione M para desativar e ativar o áudio.

Obs: Se por algum motivo o jogo não responder aos comandos, tente clicar com o cursor do mouse sobre qualquer espaço da janela do mesmo, sinalizando ao site que você está enviando os comandos para lá.

ALERTA DE SPOILER
Só continue lendo após experimentar a fase.


O século XIX viu uma grande mudança nos paradigmas da comunicação. A capacidade tecnológica de reprodutibilidade técnica da imagem gerou uma massificação do meio visual, criando e transformando as mídias. Fotografia, litografia, cinema, todas essas novidades metralharam a sociedade de apelos imagéticos. Não à toa, nesse mesmo período, surgiram vários estudos de recepção, tradução e percepção: da gestalt à semiótica. Peirce, pensador deste segundo campo teórico, percebe toda criação humana como algo semiótico. Assim o é a linguagem. É semiótica também a nossa capacidade de compreender um signo para algo além dele. Capacidade esta que permite você leitor a entender o que estou escrevendo. Nos permite perceber a virtualidade de uma representação, como uma pintura, não como algo ‘real’, mas uma idealização da mesma pela ótica de um autor. Ainda neste exemplo, sabemos que existe uma intenção do autor, uma mensagem. Ainda assim, a nossa percepção dificilmente estará alinhada com aquela intenção originária, e isto não é um mal. A obra de arte é poética, de livre interpretação e de vários possíveis ângulos de leitura. Quem assiste a um vídeo pode pular ou repetir um trecho ao seu bel-prazer. Quem vê uma escultura pode focar seu tempo e atenção a determinados detalhes em oposição a outros. Esta possibilidade é a interação que o observador tem com a obra.

Cada tipo de arte tem uma linguagem própria de percepção e interação. Agora vou focar minha escrita no tipo de mídia escolhida para este trabalho: O jogo. Ele não existe até ser jogado. A mensagem, a comunicação só se fecha através da interação. É um sistema de linguagem traduzida da realidade, adaptando suas leis e regras, mas também de processos e procedimentos próprios, que foram sendo desenvolvidos e modificados ao longo de sua ainda recente existência como mídia. Eles vêm sendo cada vez mais explorados como arte, sendo uma mídia dos novos tempos, que nasceu na era digital da cibernética. É uma mídia de grande multiplicidade, permitindo imagens, movimentos, sons, animações, ações e diferentes resultados quantificáveis. É uma realidade paralela, não somente virtual, 

O trabalho desta atividade é um jogo. Dessa forma, deve trazer essas características que o conceituam: obstáculos a serem superados através de interatividade lúdica. Como premissa, busquei traduzir obras que já tragam esse brincar com a linguagem / semiótica. O surrealista René Magritte, em sua obra "A Traição das Imagens", faz essa brincadeira / comentário / crítica a respeito da imagem e da linguagem, utilizando-se do meio representacional da pintura. Ao vermos a representação visual do cachimbo, com a frase que nega que aquilo seja um cachimbo, a reflexão se inicia. A nível de semiótica, percebemos que a obra brinca com o conceito de ícone. Aquilo não é um cachimbo pois é uma representação do objeto em si. A nível de linguagem ele nega a própria mídia, que ganha uma função para além de representar: ela guia o raciocínio do observador para fora dela, não é apenas um espaço virtual. Também nega a palavra ‘cachimbo’ como símbolo.

“A Traição das Imagens”, de René Magritte, 1928

A essência irônica desta famosa obra foi o ponto de partida para a criação da primeira fase do jogo, apresentada em formato incompleto, como exemplo de outras possíveis fases e obstáculos que possam brincar com os níveis de linguagem e semiótica. Tentei traduzir a ideia de traição da imagem e também utilizá-la no jogo. O objetivo é sair pela porta. Para tanto, precisa-se da 'chave'. A princípio quatro imagens de chave são postas para que o jogador escolha. Aqui inicia-se a reflexão: Qual chave abre a porta? Diferentes graus de abstração são apresentados:

  1. Uma fotografia de chave, a mais próxima a uma chave dita real. Mas será a chave adequada para um mundo virtual?
  2. Um desenho de uma chave, mais próximo ao universo digital, mas ainda interligada à realidade.
  3. Uma chave artística que traz a linguagem dos jogos, mas não necessariamente a deste. Está próxima à mídia em geral, mas distante desta obra específica.
  4. Um ícone de chave, como um botão. Utiliza-se das cores do jogo, e traz a simplicidade gráfica do mesmo.

A reflexão sobre a escolha da chave é a primeira parte do desafio. Na realidade, nenhuma das chaves está correta, pois o que foi pedido na verdade foi, literalmente, a ‘chave’. Mas não a chave icônica, e sim a chave simbólica. Ou ainda: não a chave simbólica, mas sim a chave icônica. Explico:

Ao ter o desafio de abrir uma porta que está trancada, o conceito de chave cria no jogador uma expectativa visual que coincide com as opções dadas pelo jogo. Dessa forma, as representações imagéticas da chave seriam a escolha mais óbvia. Neste sentido, o jogador se sente traído ao perceber que a chave correta era a palavra, que está ali presente sobre uma seta que aponta para o alto (seta esta que serve também como distração). Logo, a chave correta é escrita, simbólica. Por outro lado, a informação do obstáculo chega à percepção do jogador através da linguagem escrita. Logo, ao pedir a 'chave' utilizando-se da mesma palavra, e sendo a resposta correta a palavra chave que está na placa, esta torna-se icônica. Símbolo por interpretação do jogador, ícone por intenção do jogo. Ou assim espero. 

Dessa forma o sistema brinca com seu usuário, que é tomado de surpresa por suas próprias armadilhas linguísticas. Ao matar a charada, cria-se a ludicidade através deste elemento de surpresa e dupla interpretação. Diferente da obra A Traição das Imagens, porém, este jogo é interativo, e não brinca somente com a imageme a linguagem, mas também com o procedimento, criando uma dupla traição. 'chave' é palavra e objeto. Imagem e ação. Símbolo e ícone. Isto não é uma chave. A chave é a chave.

Dificilmente um jogo se realiza somente com uma fase, um único desafio. Poderiam haver outras formas de trazer esses obstáculos linguísticos para o jogador, que o fizessem refletir. Trago algumas outras possibilidades, que podem ser arranjadas em roteiro: Curadoria: A tela apresenta diversas imagens espalhadas, desconexas. Ao jogador é pedido que junte-as a fim de criar sensações especificadas pelo sistema através de palavras-chave. Apesar de o jogo dizer que, para passar de fase, deve-se construir um quadro correto, qualquer construção é válida, pois é subjetiva. O jogador então irá refletir como arranjar aquelas imagens de modo a criar uma possível conexão lógica ou intuitiva, mas a tarefa parece impossível, pois é comum à linguagem do jogo duas saídas: certo ou errado. Ao receber a afirmação de que seu arranjo é correto, porém, ele é duplamente validado: tanto pelo jogador quanto pelo sistema. Esta foi uma fase pensada tendo como inspiração a ideia de Atlas Mnemosyne, do Aby Warburg.

Diga-me quem sou: Nesta possível fase pretende-se jogar com as expectativas de comunicação humano-máquina. Pediria-se para que o jogador fale o nome do guardião do limiar para poder progredir. Várias opções seriam dadas em forma de botões de escolha, meio mais comum de ocorrer esta comunicação. Ao encontrar o nome certo, porém, o jogador deve, como pedido pelo sistema, falar o nome através de um microfone. Este obstáculo brinca com os paradigmas aceitos da tecnologia, que passa a ser cada vez mais comandada por voz, mas que ainda é uma forma pouco usual de comunicação homem-máquina. Também mais uma vez usa-se a literalidade da palavra falar, dizer, como emitir som, e não digitar ou clicar, comum aos meios eletrônicos.

As possibilidades seriam várias, poderia-se brincar com as várias mídias presentes no jogo para criar reflexões sobre suas linguagens e modos semióticos. O jogo foi escolhido por ser uma mídia que nasce na era da informação, era digital, cibernética, com ainda muitas possibilidades a serem exploradas pela ação do traduzir. A renovação das obras às novas mídias, compreender e adaptar suas singularidades, não como mera cópia, mas como permanência dessas ideias traduzidas em obras de arte, que vêm se reinventando de acordo com os meios técnicos que são desenvolvidos em cada época da história humana, sendo elas a própria história humana, (re)contada, (re)vivida.

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